Em abril do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro divulgou um vídeo bem humorado cumprimentando o ator Paulo Cintura pelo aniversário. Com roupa de ginástica e ar despojado, Bolsonaro apontou o Alvorada e declarou que o local o fazia sentir-se em uma “prisão domiciliar sem tornozeleira eletrônica”.
Bolsonaro ainda não cumpriu um terço do mandato, mas não cessa de reclamar da fiscalização da imprensa, das cobranças da sociedade e até da solidão do poder. Apesar dessa aparente insatisfação, no sábado, ele admitiu cogitar mais de uma reeleição. “[A Presidência] é um casamento de quatro ou oito anos. Ou, quem sabe, por mais tempo, lá na frente”, aventou.
Não está claro se foi uma inconfidência ou um balão de ensaio, mas a aposta remete aos movimentos de 2008 e 2009 de aliados do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela aprovação de uma proposta de emenda constitucional (PEC) que assegurasse um terceiro mandato ao petista. Enquanto Bolsonaro não decodifica sua fala, é certo que a afirmação dialoga com medidas que visam à alteração das regras eleitorais em curso no Congresso — embora faltem três anos para a sucessão presidencial.
Por exemplo, a PEC 230 de autoria do deputado Mário Heringer (PDT-MG) é explosiva. Na conjuntura de 2018, levaria Ciro Gomes, seu correligionário, ao segundo turno ao lado de Bolsonaro e Fernando Haddad (PT). Heringer, que é membro da Mesa Diretora da Câmara, lançou ao papel a ideia original do ex-deputado Miro Teixeira de que se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação, os três postulantes mais votados passam ao segundo turno da eleição presidencial. Elege-se quem obtiver a maioria dos votos válidos.
O professor Marco Antônio Teixeira, do departamento de Gestão Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), lembra que o exemplo na história recente de um segundo turno com três candidatos remonta à República de Weimar (1919-1933), a experiência de democracia alemã após a Primeira Guerra e antes do início do regime nazista. Em 1925, na primeira disputa presidencial em Weimar, quando se instituiu o voto direto, passaram ao segundo turno o general Paul von Hindenburg, candidato da coalizão de direita, Wilhelm Marx, do Partido Católico de Centro e Ernst Thälmann, do Partido Comunistas (KPD). O formato se repetiu sete anos depois, quando Hindenburg concorreu à reeleição. Num segundo turno histórico, ele concorreu com Adolf Hitler, que obteve 36% dos votos (mais de dois milhões de eleitores), e novamente com o comunista Ernst Thälmann, que terminou em terceiro, com 10%. No intuito de conter a escalada nazista, Hindenburg nomeou Hitler chanceler. O líder nazista assumiu o cargo em 30 de janeiro de 1933, num cenário de ampla insatisfação popular, com a taxa de desemprego em 44%. O resto é história — com desdobramentos em pleno 2020, em terras brasileiras. Líderes do entorno do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmam que a PEC 230 não deve prosperar.
Mas quando Miro Teixeira, que foi deputado constituinte, lançou a ideia em novembro em entrevista a Roberto D’Ávila, gerou frenesi entre deputados e senadores que sonham com uma vaga para um candidato de centro no segundo turno. Um deputado ligado ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse à coluna que uma inspiração seria a regra adotada na França, pela qual o candidato que alcançar 12,5% dos votos válidos vai ao segundo turno. Mas o ex-ministro da Educação e professor da Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro, pesquisador do modelo francês, explica que não é bem assim. Mestre pela Universidade Paris I (Sorbonne), Ribeiro observa que o percentual mínimo de 12,5% que garante a travessia ao segundo turno é aplicado na eleição dos deputados distritais.
A Assembleia Nacional Francesa tem 577 deputados, que se elegem por distritos. Aqueles que alcançarem esse percentual passam ao segundo turno, que pode contar com três, e raramente, até com quatro postulantes à representação daquele distrito. Titular da Faculdade de Direito da FGV-Rio, o professor Michael Mohallem faz duas ressalvas sobre a proposta do pedetista. Primeiramente, pela regra da simetria no direito eleitoral, se fosse aprovada, teria que se estender às eleições de prefeitos e governadores. Em segundo lugar, daria lugar a um presidente politicamente frágil antes mesmo da posse, já que se elegeria com cerca de 34% dos votos válidos. Marco Antônio Teixeira ressalta que a instituição do segundo turno na eleição brasileira buscou evitar que num cenário fragmentado, o vencedor tivesse menos de 50% dos votos válidos. “Um presidente eleito nessas condições [três no segundo turno] não teria legitimidade popular”, contesta. “Crise política se resolve com diálogo, não com mudanças estapafúrdias”, criticou.
Autor da PEC, o deputado Mário Heringer alega que o sistema de dois turnos estimula a polarização e induz ao voto útil, diante de pesquisas que demonstraram que Bolsonaro elegeu-se, também, com o voto antipetista. O pedetista argumenta que a presença de três candidatos no segundo turno daria ao eleitor a oportunidade de votar em um terceiro candidato, “provavelmente, com menor índice de rejeição, porque situado longe dos extremos políticos e ideológicos”. Acrescenta que a inovação poderia contribuir para a redução dos votos nulos, brancos e abstenções. Heringer admite que a chance de sua PEC prosperar é remota, embora tenha tido o expressivo endosso de 198 deputados — bastam 171 para o protocolo. Mas ele ressalta que trabalhará com afinco para viabilizar que o debate seja travado, pelo menos, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Neste ano, o colegiado será presidido por um de seus aliados próximos. São cotados para a presidência da CCJ o deputado Afonso Motta (RS), do PDT de Heringer, e o mineiro Lafayette de Andrada (Republicanos), que é seu conterrâneo. No limite, a CCJ poderá calcular se na equação política brasileira, dois é bom, mas três não seria demais.
Jornal Valor Econômico, 21/01/20. Repórter Andrea Jubé.